E de repente são todos bons e necessários

Já tinha ouvido muita coisa acerca da redução de funcionários do Estado. A retórica socialista/comunista de que devemos dar emprego às pessoas porque elas precisam e não porque elas produzem alguma coisa, é algo que está sempre presente nestas discussões.

Mas nunca tinha lido ou ouvido nenhuma comparação com as purgas Estalinistas.

Viriato Soromenho Marques consegue esta proeza. O que só reforça o grau de estranheza. Ele saberá com toda a certeza que as purgas Estalinistas nada tinham a ver com as questões que enfrentamos. Tinham a ver com a sua obsessão em se livrar de todos os que lhe faziam frente ou que ele pudesse imaginar que um dia iriam fazer.

A situação foi tão alargada, que todas as chefias militares foram eliminadas pondo em causa o desempenho das forças Soviéticas na Guerra com a Finlândia.

O único que sobrou foi o que salvou a USSR da sua própria extinção - Gregory Zhukov.

Comparar a intenção de reduzir os funcionários do Estado a purgas Estalinistas só pode mesmo ser um exercício de má fé refinada. Senão vejamos.

É sabido até à exaustão que os serviços públicos enfermam de um mal clássico - falta de eficiência.
Mas porquê?

Há uma razão extremamente simples: Não há responsabilização pelos erros, falhas ou falta de cumprimento das obrigações profissionais.

É tão simples como isto.
Mas há muitos tipos diferentes de funcionários públicos e nem todos são a mesma coisa.

Falem com alguém que trabalha muito mais que as ditas 35 horas e ouvirão da sua boca os casos dos colegas que pouco ou nada fazem e para quem as 35 horas são um suplício interminável.
Eles próprios vos identificarão de entre eles quais os que claramente não fazem nada.

E isso é assim em todos os serviços. Ouvimos há bem pouco tempo da boca de um director de um hospital de referência os números incríveis de absentismo e falta de produtividade do seu staff.



Se num hospital 20% das pessoas estão em baixa, alguns há vários anos, é óbvio que esse hospital pode funcionar sem eles. Claro que se uma pessoa estiver de baixa por razões médicas fundadas não vamos simplesmente dar-lhe um chuto no traseiro e entregá-lo à sua sorte, mas há muito boa gente que usa este expediente para não trabalhar durante anos, auferindo o salário e todos os benefícios que trazem uma carreira na função pública.

No fim de contas, mesmo com os funcionários que têm, há serviços em que apenas um terço das pessoas trabalham efectivamente.
Esta ideia generalizada de que o funcionalismo público não trabalha o que devia, não apareceu ontem. Esta convicção tem décadas.

Como por protecção constitucional estas pessoas são mais ou menos intocáveis, a não ser com processo disciplinares e razões fundadas para o seu despedimento, a administração pública está pejada de gente que na realidade nunca trabalhou. Vão andando por ali.
Mas ao contrário do que se passa numa empresa privada em que o custo/receita é ponderado, no funcionalismo público é o dinheiro de todos que paga este tipo de situações. E são muitas, mesmo muitas.
Um dos principais problemas da recolocação das pessoas noutros serviços tem a ver muitas vezes com a sua incapacidade e falta de vontade de darem conta do recado nos sítios para onde vão. Primeiro pela rampa de aprendizagem de uma nova função e depois pelos maus hábitos acumulados ao longo de anos que pura e simplesmente é impossível reverter.

Sei de casos de pessoas recolocadas noutros serviços que tinham uma necessidade desesperada de novas "mãos" que ao chegar ao lugar não se adaptaram porque a carga de trabalho era algo a que não estavam habituados. E como toda a vidinha sairam aquela hora acontecesse o que acontecesse não viam com bons olhos ter de ficar mais algum tempo para dar conta do serviço. Simplesmente não estão para isso. E a perfeita convicção de que não haverá consequências faz com que se comportem assim. Sempre.

Temos portanto um nó górdio para desatar. Há serviços com uma necessidade desesperada de recursos e excedentes doutros serviços que simplesmente não conseguem fazer esses lugares. São efectivamente redundantes e acabam por ser um peso pago pelos impostos de todos nós.

O que fazemos com toda esta gente? Continuamos a fingir que não se passa nada? Continuamos a manter estas pessoas a ocupar head count com a quantidade de gente que tem qualificações, precisa de trabalhar e não tem um emprego?

Uma pessoa amiga que trabalhou num serviço do Estado como externo durante algum tempo descreveu-me aquilo que se pode considerar de emblemático.
O serviço tinha uma série de senhoras na casa dos 40 e tantos que de manhã corriam para o relógio de ponto, apenas para sair para o café onde tomavam o seu pequeno almoço descansadamente. Voltavam por volta das 10, 10:30 e passavam o santo dia ao telefone com a filha, com a amiga etc etc.

Num ano e tal de trabalho ele nunca soube realmente qual era a função dessas pessoas. Até porque quando alguém lhes pedia para fazer alguma coisa diziam sempre que não era com elas. Isto era num ministério e toda aquela gente era licenciada. Tudo "doutoures". E obviamente faziam questão de saber o grau académico de quem por lá andava. Foi a primeira coisa que lhe perguntaram. POdem não fazer nada mas preocupam-se com a etiqueta.
Enquanto que ele ficou muitas vezes até bem tarde, não havia uma daquelas pessoas que ficasse para lá da hora. Um minuto que fosse.
Foi isto a que ele assistiu durante um alargado período de tempo.
A juntar a isto havia um sem fim de consultas médicas, saídas para tratar deste ou daquele assunto pessoal e obviamente o tempo de preparação para as férias e a adaptação ao "trabalho" no regresso das férias.
Dizia-me ele que eram simpáticas com ele. Desde que não lhe pedisse para fazer nada.

Agora ponham-se na pele duma pessoa que trabalha no privado, contratada para um serviço público que assiste a isto dia após dia. Que ganha uma fracção do salário que aquelas pessoas auferem e que nunca consegue trabalhar apenas 8 horas num dia.

Eu próprio há uns anos assisti a este fenómeno em dois sítios. Ministério das Finanças e Ministério da Justiça.
Tudo o que era necessário fazer envolvia a contratação de gente de fora. Um dia, no meio de uma emergência complicada fui chamado para resolver um problema.
Chegado ao serviço parecia impossível encontrar a pessoa responsável pelo alerta. Finalmente encontraram-no e veio buscar-me. Parecia anormalmente descontraído para o alarme gerado.

Á minha frente e enquanto eu diagnosticava o problema, lia o jornal com os pés em cima da secretária. Recebeu uma chamada e começou uma conversa sobre uma qualquer remodelação da "carreira". A seguir ao almoço não o vi mais. Estamos a falar dum indivíduo técnico superior, na casa dos 30 responsável pelo sistema com problemas.

Depois da resolução, não ouvi falar mais dele. Não quis saber o que tinha sido ou como se tinha resolvido. Sabia perfeitamente que se o problema ocorresse lhe bastava fazer uma chamada e mandavam um idiota qualquer para fazer o que ele tinha de fazer. Mais ainda, usando e abusando da posição da administração pública como "cliente" da empresa onde eu trabalhava, pura e simplesmente não pagavam nenhum dos custos associados com a minha deslocação ou presença.

À data eu tinha a mesma idade dele. Não tinha nem de perto o salário dele. E nada que se parecesse com aquela vida descansada em que se subia apenas por estar por ali durante cinco anos.

Isto passou-se no fim da era Cavaquista. Depois disso entraram milhares de pessoas assim para a função pública. Ainda conheci uns quantos. O seu nível de dedicação e know how era demasiado mau para descrever. Simplesmente não levantavam uma palha. Apenas se queixavam da triste vida que tinham.

Todos nós já vimos isto. Todos nós sabemos que o país carrega uma quantidade de gente que nada faz nem nada quer fazer. Fossem esses os visados por esta medida e eu ficaria descansado. Mas se calhar não vão ser. Vão ficar directores imbecis, chefes de serviço incompetentes e calões. E ra por aí que se devia começar a purgar os mais hábitos deste Estado inoperante.

Mas não me venham com o argumento da perca de emprego. Uma coisa é ter um emprego para fazer um trabalho e outra muito diferente é ter um emprego em que não se produz nada em troca, num país com uma das piores produtividades da Europa.
O dinheiro que paga toda esta gente que nada faz só vem de um sítio. Dos cidadãos. É o único dinheiro que o estado tem. E eu prefiro que o meu dinheiro seja para pagar a alguem que trabalhe ou então não me fiquem com ele.

Querer comparar esta medida com uma purga é forçar a barra em demasia. Há gente na função pública que não faz nada, se sente impune e cheia de direitos. Vai sendo altura que alguém exija a esta gente que dê alguma coisa em troca daquilo que lhes pagam. Estas pessoas que saltam a terreiro a defender duma forma geral a ineficácia, preguiça e falta de respeito pelos cidadãos devem ser dos primeiros a ficar furiosos com a morosidade dos serviços ou com a forma como são tratados.

Parem para pensar e digam-me lá se não faziam uma mexida qualquer na repartição onde vão ou no serviço onde os atendem como lixo.